Depois de ter visto O Botão de Pérola há algumas semanas, na Mostra, decidi reassistir à trilogia do documentarista chileno Patricio Guzmán, A Batalha do Chile, sobre o golpe sofrido pelo presidente Salvador Allende e que deu início à ditadura Pinochet, em 1973. É curioso como a história é cíclica e como em muitos momentos aquele período da história chilena se parece um pouco com o atual momento brasileiro, embora também guarde diferenças enormes, especialmente em relação à atuação do governo.
Ali, o Chile estava dividido entre apoiadores do Allende, de esquerda, e os oposicionistas, de direita. Entre a oposição, havia um grupo forte de fascistas que não aceitava a ascensão de um governo de esquerda e queria eliminá-lo a qualquer custo. Vale destacar que não é o caso de toda a direita. Há oposicionistas de direita que se contentam em realizar seu papel de crítico ao governo e buscam alcançar seus objetivos pelas vias democráticas. Mas há também aqueles que espalham ódio e desinformação e que bradam a plenos pulmões contra “esses comunistas malditos” e outros “elogios” comuns a essa gente mais exaltada, que também costuma andar pelas ruas do Brasil trajando as cores da bandeira em alguns protestos por aí.
Da mesma forma, também é possível ver que há uma ala da esquerda que também é mais radical, que facilmente partiria para o confronto físico com essa direita estridente e com os fascistas (que sim, precisam ser rechaçados). A questão é que, no Chile, a direita estava contra um governo claramente de esquerda, que passava por um processo grande de estatização de empresas, pelo início de um projeto de reforma agrária, um apoio total e irrestrito à classe trabalhadora e uma posição firme em relação aos fascistas. E, vamos combinar, esse não é o caso do Brasil atual.
Aqui, uma imensa parte da nossa direita realmente acredita que o governo Dilma, por exemplo, é um governo de esquerda socialista, assim como era o de Allende. O que chega a ser até engraçado, de certa forma, porque eles bradam cegamente contra algo irreal. É uma batalha quixotesca contra uma suposta esquerda que não passa de um moinho de vento. Aqui, embora durante todo o período Lula/Dilma tenha havido bons investimentos em projetos sociais, os governos petistas nunca bateram realmente de frente com o capital, com os grandes empresários, os bancos, etc. Pelo contrário, toda essa classe lucrou e continua lucrando zilhões de dinheiros durante os governos petistas. Os bancos batem recordes de lucros todos os anos. Já no Chile de Allende, todos os bancos nacionais e estrangeiros foram estatizados.

Último registro em imagem do presidente Salvador Allende, horas antes de morrer no Palácio de La Moneda
É um ato meio esquizofrênico esse ódio da direita contra os governos do PT, exatamente porque eles ficaram marcados por uma política de boa vizinhança com esses empresários, em nome da governabilidade. Governabilidade bastante questionável, já que atualmente o governo é refém de todos eles e do Congresso, e praticamente não consegue governar, a não ser quando se submete a realizar alianças espúrias.
Mas enfim, voltando aos filmes do Guzmán, porque isso aqui é um site de cinema e não de política, ter um Congresso de oposição era o que atrapalharia ainda mais o governo Allende, já que, se a oposição alcançasse uma maioria de 60% em relação aos apoiadores do governo, poderia cassar o mandato do presidente. E é justamente durante o processo de eleição do legislativo que começa o primeiro filme, A Ascensão da Burguesia, mostrando que começava ali, com essa tentativa de golpe branco, a destituição de Allende de seu cargo. Derrotados nas urnas, os oposicionistas passaram, então, a trabalhar de outras formas para garantir que Allende não chegasse ao fim de seu mandato.
Com o apoio da CIA (sim, a própria), começaram a organizar vários boicotes para tentar desestabilizar o governo de Allende, como greves das empresas de transporte, para fazer com que os trabalhadores não chegassem às fábricas (lembrando que grande parte das empresas haviam sido estatizadas), greves nas minas de cobre e entre os próprios empresários e diretores de empresas, para tentar parar a produção do país, boicotes na distribuição de alimentos e uma série de outras tentativas de atar os braços do governo.

Lemas como “Criar, criar, poder popular!” e “Allende, Allende, o povo te defende” eram entoados pelo povo nas ruas
O problema, até então, é que eles não contavam com o gigantesco apoio popular que Allende tinha. Em meio a tudo isso, ao invés de todos esses boicotes convencerem os trabalhadores de que o melhor seria tirar o presidente do poder, já que a situação do país havia piorado, isso serviu para que o povo se unisse ainda mais e aumentasse o apoio ao presidente. Vemos isso destacado na terceira parte da trilogia, O Poder Popular, que mostra como os trabalhadores se organizaram para continuar indo ao trabalho, para não pararem a produção, como uniram forças para cuidar da distribuição de alimentos pra toda a população.
Aliás, é muito bonito ver como todos ali pareciam muito cientes da situação política do país e sabiam que precisavam agir de alguma forma para que saíssem da crise que estavam vivendo. E que isso só poderia vir com muito trabalho e sacrifício. Era para um bem maior, afinal de contas, pois tinham noção de que eram explorados pelos patrões. Ceder à pressão dos chefes seria uma derrota gigantesca e a certeza de que dificilmente haveria outra chance de terem uma vida mais digna. A câmera de Guzmán registra vários encontros e assembleias de trabalhadores para discutirem quais serão os rumos tomados, quase como se ela própria fosse um daqueles operários.
Já na segunda parte da trilogia, O Golpe de Estado, que aqui deixei para o final, Guzmán se dedica a relatar os meses que antecederam o Golpe de 11 de setembro de 1973, com toda a articulação de parte do exército, com o apoio dos EUA, para, enfim, derrubar de uma vez por todas Allende, já que não conseguiram nas urnas e nem tentando manipular a população. Era a hora do golpe aberto, da tática militar, do confronto físico, do bombardeio ao Palácio de La Moneda. É assustador olhar as cenas do palácio sendo bombardeado por caças com o presidente e umas poucas dezenas de apoiadores lá dentro. É terrível saber que isso aconteceu há tão pouco tempo. É nesse capítulo da trilogia que vemos a ascensão de Pinochet, que recentemente havia se tornado comandante chefe do exército, depois que os principais apoiadores de Allende foram obrigados a renunciar. Para não ser pego pelos militares, Allende se suicida dentro do palácio e o resto é história. Uma triste história, diga-se.

Bombardeio ao Palácio de La Moneda
Não vou renunciar! Colocado numa encruzilhada histórica, pagarei com minha vida a lealdade ao povo. E lhes digo que tenho a certeza de que a semente, que entregamos à consciência digna de milhares e milhares de chilenos, não poderá ser ceifada definitivamente. [Eles] têm a força, poderão nos avassalar, mas não se detêm os processos sociais nem com o crime nem com a força. A história é nossa e a fazem os povos” – Salvador Allende
A Batalha do Chile é um marco do cinema documental e um dos mais importantes retratos políticos já produzidos. Nasceu já no olho do furacão, como uma reportagem sobre a eleição do parlamento chileno, e acompanhou de perto todo o processo que culminou na morte de um dos presidentes mais populares da América do Sul e no início de uma das ditaduras mais sangrentas de que se tem notícia.
A trilogia de Guzmán vai além e possui outro registro importante: durante uma das tentativas de insurreição do exército chileno, às vésperas do Golpe, o cinegrafista argentino Leonardo Henrichsen acabou registrando a própria morte com sua câmera. Ao filmar um grupo de militares que tenta dispersar apoiadores de Allende, um deles mira sua arma diretamente para Leonardo e atira. Segundos depois, ele cai e não vemos mais imagem alguma. Leonardo foi levado ao hospital, mas acabou morrendo. Foi apenas uma das dezenas de milhares vítimas da ditadura chilena, que naquele momento ainda estava apenas no rascunho, mas que já se desenhava como uma das mais violentas da história.