Três mestres: De Palma, Bernardet e Paulo Emílio Sales Gomes

Vocês já pararam pra pensar no Brian De Palma hoje? Pois deveriam. Não apenas hoje, mas sempre. É um dos grandes cineastas da história do cinema, sem a menor dúvida. No entanto, tenho pra mim que é um dos caras mais subestimados desse meio, especialmente tendo realizado o que realizou. Alguém que, entre tantos ótimos filmes, fez Carrie, a Estranha, Vestida para Matar, Um Tiro na Noite, Scarface e Os Intocáveis não poderia ser tão menosprezado. Até entre o grupo de cineastas a que pertence, aqueles da Nova Hollywood, acaba sendo sempre o último nome lembrado entre Spielberg, Scorsese, Coppola e George Lucas. E não vou nem começar a falar de Oscar aqui, porque a Academia NUNCA O INDICOU UMA ESTATUETA SEQUER! Enfim, azar do Oscar.

Essa lenga-lenga toda do início foi apenas para enfatizar sua importância e dizer que chega aos cinemas (infelizmente, a poucos) nesta quinta-feira (24) o documentário De Palma, de Noah Baumbach e Jake Paltrow. O filme em si é muito simples em sua realização: durante sua 1h50m, assistimos apenas ao próprio De Palma falando sobre toda a sua carreira, com trechos de seus filmes, contando curiosidades sobre a produção de cada um deles e demonstrando por A mais B (sem que seja essa sua intenção) quão grande é, sempre com bom humor, especialmente ao falar de si próprio.

Entre uma história ou outra mais bem humorada, como quando convidou o lendário Bernard Herrmann para compor a trilha sonora de um de seus filmes ou quando Al Pacino praticamente fugiu das filmagens de O Pagamento Final porque pensou que o diretor não sabia o que estava fazendo, conhecemos um pouco melhor o artista De Palma, seu modo de trabalho, suas inspirações e o legado que pode morrer com ele do cinema hitchcockiano que, como ele próprio diz, ninguém mais realiza. E quem conhece um pouco melhor as obras de Hitchcock e De Palma reconhece de cara a influência do britânico em sua carreira.

Com quase 30 longas realizados, em mais de 50 anos de carreira, é inegável a contribuição de De Palma para o cinema mundial. Carrie está em qualquer lista que se preze com os melhores filmes de terror de todos os tempos, assim como Scarface e Os Intocáveis em listas semelhantes no “gênero” de gângster. E que dizer de Blow Out: Um Tiro na Noite (Hitchcock encontra Antonioni) e Dublê de Corpo? Até Missão: Impossível, que é mais ligado a Tom Cruise (produtor e astro) que ao próprio cineasta, traz características bastante autorais suas. E mesmo filmes mal recebidos, como A Fogueira das Vaidades e Paixão, seu último trabalho, possuem ótimos momentos, especialmente quando extrapolam a realidade e forçam situações propositalmente caricatas, muitas vezes incompreendidas, mas que combinam perfeitamente tanto com as tramas quanto com a personalidade sarcástica do cineasta.

Enfim, vejam “De Palma” e vejam De Palma. Um mestre.

E por falar em mestre…

Jean-Claude Bernardet e Paulo Emílio Sales Gomes

Andava meio de mau-humor com o cinema nos últimos tempos. Acho que 2016 não foi um grande ano e foram poucos os filmes que me marcaram. Pra piorar, ando com uma preguiça enorme do que se fala (ou não) sobre cinema por aí. Parece tudo mais do mesmo, sem boas ideias sendo discutidas, sem que se “pense cinema” para além da obra que se (mal) analisa. E veja bem, não quero parecer desrespeitoso com nenhum colega da área, até porque eu mesmo não tenho lá grandes coisas pra falar a respeito ultimamente, tanto que o site quase não foi atualizado esse ano, mas me parece que ninguém tem muita coisa a dizer, né?

Justamente por isso, por esse marasmo todo, aproveitei para estudar um pouco mais e ler uns caras que, obviamente, têm muito mais a dizer (e disseram) do que eu jamais conseguiria fazer, especialmente Paulo Emílio Sales Gomes e Jean-Claude Bernardet. Dois dos maiores críticos que a gente já teve. Andei lendo recentemente um dos artigos mais celebrados do Paulo Emílio, “Uma Situação Colonial?”, de novembro de 1960, no qual ele reflete sobre o cinema brasileiro e a influência das obras estrangeiras não apenas nesse setor, mas na nossa própria cultura. Separei uns trechos interessantes aqui.

“O denominador comum de todas as atividades relacionadas com o cinema é, em nosso país, a mediocridade. A indústria, as cinematecas, o comércio, os clubes de cinema, a crítica, a legislação, os quadros técnicos e artísticos, o público e tudo o mais que eventualmente não esteja incluído nesta enumeração, mas que se relacione com o cinema no Brasil, apresentam a marca cruel do subdesenvolvimento”.

Paulo Emílio Sales Gomes

Paulo Emílio Sales Gomes

“Mesmo os que, como se diz, vencem na vida, não se furtam à regra. Importadores e exibidores atingem a prosperidade, mas apenas como reflexos de realidades sociais situadas fora de nossas fronteiras. São incapazes de violar as normas envelhecidas de um jogo que há muito deixou de corresponder às exigências de nosso dinamismo nacional. Sua prosperidade não está condicionada ao processo de emancipação e enriquecimento da comunidade. A situação de coloniais implica em crescente alienação e no depauperamento do estímulo para empreendimentos criadores. Esses homens práticos não estão, na verdade, capacitados para nenhuma ação de conseqüências no quadro geográfico e humano brasileiro. Podem ter idéias e fazer projetos, mas sempre dentro dos limites estreitos ditados por uma situação externa diante da qual se sentem desarmados. Não encontrando canais para concretizar-se na realidade, a imaginação desses homens atrofia-se como qualquer outro órgão sem função”.

“Outros, que às vezes são os mesmos do parágrafo anterior, prosperam na produção de filmes nacionais. Aqui a norma é igualmente a capitulação, apenas, os obstáculos apontados como intransponíveis, são o próprio público. Produzem determinado gênero de fitas que eles próprios desprezam, alegando ser o único tipo de cinema brasileiro que o público aceita. No fundo, esses homens, cuja atividade principal é, às vezes, a importação e exibição de obras estrangeiras, estão convencidos de que o público brasileiro é infenso ao cinema nacional. As películas que fabricam, aliás, não são propriamente cinema, para o público, mas o prolongamento de espetáculos que esse público admira no rádio, televisão e teatro ligeiro. Essas fitas brasileiras não se incluem na ração maior ou menor de cinema introduzida nos hábitos do povo. Tal necessidade é satisfeita pelos filmes estrangeiros. O que assegura o sucesso das películas a que nos referimos é o fato de não serem comparadas pelo espectador aos produtos de outros países. Cria-se assim uma harmoniosa combinação de pontos de vista entre os produtores e o público desses filmes brasileiros. Para ambos, cinema mesmo é o de fora, e outra coisa é aquilo que os primeiros fazem e o segundo aprecia”.

“O crítico cuida de algo que recebe passivamente e sobre o qual não possui elementos de influência. O crítico do New York Times dialoga com Kazan e o do France Observateur com Clouzot. A crítica e o diálogo marcam os cineastas e camadas ponderáveis do público. Por motivos óbvios, o crítico brasileiro não dialoga com os autores das obras importadas. Sua possibilidade limita-se, na melhor das hipóteses, a influir sobre os distribuidores ou a censura. O crítico não nutre ilusões acerca de um público cujo subdesenvolvimento se manifesta também na apreciação cinematográfica. Esse estado de espírito o conduz a transformar a crítica em simples conversa pública a respeito de seus entusiasmos e ojerizas. Seu único diálogo é com os confrades e num tom que ignora os leitores eventuais. A falta de comunicação na comunidade faz tender o crítico ou ensaísta a orientar o seu espírito, cada vez mais, para as coletividades onde nascem os filmes que aprecia. Assim como a prosperidade do importador está condicionada a realidades econômicas estrangeiras, o enriquecimento cultural do crítico gira progressivamente na órbita de um mundo cultural distante. Como o primeiro, acaba marcado pelos sintomas da alienação. Esse fenômeno lança alguma luz sobre a ambiguidade das posições do crítico brasileiro frente à produção cinematográfica de seu país. O filme nacional é um elemento perturbador para o mundo, artificial mas coerente, de idéias e sensações cinematográficas que o crítico criou para si próprio. Como para o público ingênuo, o cinema brasileiro também é outra coisa para o intelectual especializado. Atacando com irritação, defendendo para encorajar, ou norteado pela consciência de um dever patriótico, o crítico deixa transparecer sempre o mal-estar que o impregna. Todas essas posições, particularmente o sarcasmo demolidor, são véus utilizados para esconder o sentimento mais profundo que o cinema nacional suscita no brasileiro bem formado — a humilhação”.

Jean-Claude Bernardet

Jean-Claude Bernardet

Os trechos acima, especialmente o último, dialoga perfeitamente com algo que Jean-Claude Bernardet escreveu também nos anos 1960, em seu livro “Brasil em Tempo de Cinema: Ensaio Sobre o Cinema Brasileiro de 1958 a 1966”, no qual relaciona os filmes realizados nesse período com a nossa sociedade, especialmente ligando-os à classe média, fatia da sociedade à qual pertencia a maior parte dos cineastas/autores dessa época. O trecho que destaco é justamente sobre a posição da crítica brasileira, de sua responsabilidade diante das obras nacionais e de como costumava atuar à época. Hoje, me parece, as coisas não andam muito diferentes, o que faz do texto, mesmo 50 anos depois de escrito, ainda muito atual.

“No setor da crítica cinematográfica, o fenômeno é quase o mesmo. Os críticos pertencem a essa elite que só via cultura em produções estrangeiras, as quais, na maioria dos casos, exigiam deles apenas um juízo acertado. O próprio objeto do trabalho profissional do crítico era desvinculado de sua realidade. E, como acontece com o público, ainda que num plano diferente, o cinema nacional provoca o crítico de modo mais global. Diante de um filme estrangeiro, o crítico tem, em geral, a responsabilidade de ser um bom crítico, nada mais; diante de um filme nacional, tem a responsabilidade de um homem que participa ativamente da elaboração de uma cultura. A atitude do crítico diante do cinema de seu país é obrigatoriamente combativa, e sua responsabilidade é direta, não só diante dos filmes, mas também diante da realidade abordada, diante do público e dos cineastas. Essa experiência tem faltado à crítica brasileira, que se limitou a adotar uma atitude contemplativa de amador de arte, e que, em decorrência, chegou frequentemente a atacar, com argumentos irracionais, o cinema brasileiro, pois esse ameaça os valores vigentes na torre de marfim”.

E eu que andava carente de ver gente pensando cinema, fui quase que como atingido por um raio ao ler Paulo Emílio e Jean-Claude refletindo sobre o cinema brasileiro há mais de 50 anos e percebendo quão atuais e sensacionais os dois ainda são, pensando de forma otimista, e como a gente ainda está muito parado no tempo, pensando de forma realista/pessimista.

Enfim, o tamanho desse post deve ter espantado a maior parte dos parcos leitores desse site, mas se você chegou até aqui, obrigado pela companhia. Eu andava meio ausente, mas o encontro com esses três mestres me inspirou a tirar a poeira. Espero não demorar tanto a voltar.

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Jornalista e crítico de cinema. Coautor do livrorreportagem Cine Belas Artes: Um Olhar Sobre os Cinemas de Rua de São Paulo. Acha O Poderoso Chefão o melhor filme do mundo, mas torce todos os dias para assistir a algum que o supere. Ainda não encontrou, mas continua buscando. E-mail: carlos@setimacena.com // Letterboxd: @CarlosCarvalho