Uma porrada de filmes sobre a ditadura. Pra que nunca se repita

Recentemente, embora isso seja frequente, passamos por uma situação bastante constrangedora (e revoltante) na nossa política, que foi a votação na Câmara dos Deputados pela aprovação do pedido de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. Independente das questões envolvendo a legitimidade ou não desse processo, houve um discurso em específico que ganhou notoriedade, o do deputado Jair Bolsonaro que, entre outras bizarrices, homenageou o coronel do exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, um dos maiores torturadores do período da ditadura militar que se iniciou após o Golpe de 1964. Como se não bastasse a homenagem a um torturador, Bolsonaro foi explícito no recado direto que enviou ao citar Brilhante Ustra como “o terror de Dilma Rousseff”, já que ele era chefe do DOI-CODI onde Dilma ficou presa e foi barbaramente torturada.
 
Não foram poucas as pessoas que demonstraram apoio ao deputado e isso reacendeu novamente um pequeno debate sobre a ditadura militar. E como acho que essa é uma questão importante e que jamais deveria ser negligenciada por nós, decidi fazer uma lista com alguns filmes que tratam de temas relacionados à ditadura, ou com personagens que foram importantes durante esse período, para que jamais nos esqueçamos da barbárie que ela foi. Da mancha negra que ela deixou em nossa história e que nunca conseguiremos apagar, embora haja um esforço gigantesco para que ela não seja enxergada. Esforço, inclusive, que já aponta para debates revisionistas dessa história, com o intuito de reescrevê-la para que se faça parecer que a ditadura militar não foi tão ruim quanto parece. O que é um absurdo e uma canalhice atroz.
 
É fato que não damos a devida atenção a esse período da nossa história e muito disso é herança da tenebrosa lei de anistia, que perdoou não apenas aqueles que lutaram contra a ditadura, esses com toda justiça, mas também os militares que praticaram os mais imperdoáveis crimes contra a humanidade. Gente que sequestrou, torturou e matou civis, artistas, intelectuais, políticos e toda e qualquer pessoa que se opunha contra o regime militar implantado a partir de 1964. Aliás, muitas vezes, até quem sequer se posicionava contra o regime era preso, torturado e morto, como mostra um dos filmes dessa lista.
Portanto, deixo aqui uma pequena contribuição para que a gente possa aprender um pouco mais sobre esse período terrível. Vale dizer que, para esta lista, abri mão em vários momentos da qualidade cinematográfica em troca da importância do tema. Nem todos os filmes são otimamente bem realizados. Alguns, inclusive, do ponto de vista artístico, são bastante ruins. Mas são registros importantes para que possamos entender a complexidade desse período. Suspeito que alguns deles sequer tenham sido lançados no cinema. E vários dessa lista podem, inclusive, ser encontrados completos no YouTube.
 
Não há desculpas para não conhecermos nossa história. Inclusive, aproveito a deixa para recomendar duas obras essenciais e públicas para se entender melhor esse período: o relatório final da Comissão Nacional da Verdade, que investigou a fundo o período (embora não tenha tido acesso a muitos dos arquivos que ainda permanecem em segredo de Estado) e o livro “Infância Roubada”, da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, que fala especificamente sobre as crianças que foram torturadas pela ditadura militar. São relatos muitas vezes de revirar o estômago, mas que nem de perto podem ser comparados com o sofrimento que deve ser vivenciar uma ditadura militar.
 
Pra que nenhum canalha torturador volte a ser homenageado por outros canalhas que apoiam essa prática, é preciso que a gente saiba quem essas pessoas foram, o que elas fizeram e quem foram suas vítimas. Se posso dar alguma contribuição, aqui está.
 
Terra em Transe, de Glauber Rocha
Terra em Transe foi censurado pela ditadura militar, que o considerou subversivo. Não era por menos, já que o filme, lançado em 1967, não poupou críticas a todas as camadas da sociedade. Políticos de esquerda e direita, imprensa, empresários, igreja, ativistas… o filme é uma salada complexa de ser digerida numa única assistida, mas que dialoga muito bem não apenas com o período em que foi realizada mas também com os dias de hoje, já que a política nacional não é totalmente diferente de 50 anos atrás.
 
Batismo de Sangue, de Helvécio Ratton
Longa baseado no livro homônimo do Frei Betto, que mostra como foi o apoio de vários freis dominicanos na luta contra a ditadura. Há passagens bem interessantes nesse filme, como o contato dos freis com a luta armada liderada pela ALN, do Marighella, assim como com os movimentos estudantis, mostrando inclusive a organização do Congresso da UNE em Ibiúna, aquele que levou meio mundo preso, inclusive o Zé Dirceu.
 
Pra Frente, Brasil, de Roberto Farias
Esse é o filme que comentei que não precisava se posicionar contra o regime, bastava que se estivesse no lugar errado e na hora errada e você se tornava uma vítima da ditadura. Aqui, Reginaldo Faria interpreta um homem de classe média que trabalha em um escritório. Por acaso, um dia, acaba dividindo um táxi com um militante de esquerda. É o suficiente para que esse carro seja alvejado por policiais, que matam o motorista e o militante, e o levam para ser preso e torturado, como se fosse também um militante contra o regime. A história toda se passa durante a Copa do Mundo de 1970.
 
O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger
Em 1970, próximo de começar a Copa do Mundo, um menino de 12 anos acaba separado dos pais, que se justificam para o menino que precisam tirar umas férias e que ele precisará ficar na casa do avô. Os pais, na verdade, são perseguidos políticos e precisam fugir para não serem presos e, provavelmente, mortos. O problema é que o avô do garoto morre justamente no dia em que ele chega à sua casa e ele terá de ficar na casa de um vizinho judeu, à espera do retorno de seus pais. Não devem ter sido poucas as crianças que precisaram se esconder ou fugir com os pais perseguidos pela ditadura militar e o filme de Cao Hamburger é primoroso ao nos transmitir a melancolia de uma criança que aguarda ansioso por um reencontro que pode nunca acontecer.
 
O Dia que Durou 21 Anos, de Camilo Tavares
Não sei se esse filme chegou a ser exibido nos cinemas, mas ele passou numa TV Câmara ou TV Senado da vida em três partes. De toda forma, é importante porque é o único que conheço que detalha a participação do governo dos EUA no golpe de 64. Ele foi dirigido pelo Camilo Tavares, que é filho do jornalista Flávio Tavares, que vocês com certeza verão em vários dos documentários listados aqui, porque além de atuar como jornalista no ano do golpe, posteriormente ele entrou para a luta armada contra o regime e acabou preso, sendo um dos libertados em troca do embaixador americano Charles Burke Elbrick.
 
Hércules 56, de Silvio Da-Rin
Por falar em sequestro do embaixador americano, esse documentário trata justamente dessa história. Ele tem entrevistas com várias das pessoas envolvidas. Desde os que planejaram e executaram a ação até os presos políticos que foram libertados em troca do embaixador, como o Flávio Tavares. A única baixa entre os entrevistados é a ausência do Fernando Gabeira que, se eu não me engano, nem é citado no filme. Achei esquisito, mas deduzi que talvez ele não tenha aceitado participar. De toda forma, vale bastante a pena.
 
O que É Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto
Pra quem se interessar pela versão mais romanceada desse episódio, pode assistir a O que É Isso, Companheiro?, que chegou a concorrer ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, mas acabou perdendo para um filme holandês chamado Caráter, que confesso não ter visto. Mas acho que muita gente já deve ter visto esse filme do Bruno Barreto, que chegou a passar bastante na TV também.
 
Caparaó, de Flavio Frederico
Pra quem não sabe, durante a ditadura militar, houve o surgimento (ou pelo menos uma tentativa) de grupos de camponeses que tentariam enfrentar os militares a partir do campo. Esse documentário conta a história do surgimento do primeiro desses grupos, a guerrilha de Caparaó, que não chegou a durar por muito tempo.
 
Camponeses do Araguaia: A Guerrilha Vista por Dentro, de Vandré Fernandes
Ainda sobre as guerrilhas camponesas, a mais conhecida de todas é justamente a que se formou na região do rio Araguaia, no Norte do país. Ela foi formada pelo PCdoB com o intuito de iniciar uma revolução socialista a partir do campo, tendo como influência as revoluções cubana e chinesa. Essa é a guerrilha da qual participou o ex-deputado José Genoíno e que acabou massacrada pelos militares. Mas esse documentário, especificamente, trata mais da relação da população local com os guerrilheiros e da opinião deles sobre a guerrilha. Se alguém conhecer algum documentário que fale mais sobre o grupo de guerrilheiros e puder indicar, agradeço.
 
Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho
Em 1964, Eduardo Coutinho foi até a Paraíba para filmar em formato de ficção a vida de um camponês da Liga Camponesa do Sapé, que acabou morto a mando dos latifundiários da região. No meio das filmagens, a equipe de Coutinho foi perseguida pelo exército que acabara de dar o Golpe Militar e quase todo o equipamento de filmagem, bem como os rolos com o que já haviam sido gravados, foram confiscados. Em 1981, 17 anos depois, Coutinho volta para a região do Sapé para concluir seu filme. Dessa vez, misturando a ficção que gostaria de ter realizado na época com o formato de documentário, que viria a consagrá-lo como nosso maior documentarista.
 
Eles Não Usam Black-Tie, de Leon Hirszman
A resistência contra a ditadura também aconteceu de maneira indireta, como no caso das greves de operários. O foco dessas greves era sempre por melhoria de salários e de condições de trabalho, no entanto, elas também foram bastante combatidas pelas forças militares, especialmente a polícia, porque de toda forma se tratavam de “subversões”, como se costumava chamar tudo o que não era pró-regime. Esse clássico do Leon Hirszman é baseado na peça homônima do Gianfrancesco Guarnieri e conta a história de uma família que tem pai e filho operários em lados opostos dessas greves.
 
ABC da Greve, de Leon Hirszman
Além do filme acima, Leon Hirszman também realizou um ótimo documentário sobre as greves que aconteceram na região do ABC Paulista (Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul), que tiveram como líder ninguém menos que o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Embora ele fale pouco sobre a relação com a ditadura, é importante por mostrar como era difícil tentar negociar qualquer coisa com os empresários sendo que esses eram totalmente apoiados pelo regime militar (e vice-versa). Para quem se interessa por política, é interessante ver praticamente o surgimento do Lula como figura mitológica da nossa política, para entender de onde vem tanto apoio que ele recebe até hoje. Só uma coisa a mais que gostaria de citar sobre esse filme: vale se atentar ao fato de que, nessa época, o presidente da Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) era um senhor chamado Mário Garnero, pai do empresário e apresentador de TV Álvaro Garnero e avô do Álvaro Garnero Filho, aquele rapaz que discutiu com o Chico Buarque na rua. Ou seja, o antipetismo parece ser coisa antiga, desde antes de o PT ser fundado, e de família.
 
Jango, de Silvio Tendler
Documentário essencial do Silvio Tendler sobre o ex-presidente João Goulart. Importante para entender o papel dele na política antes, durante e depois do golpe que ele sofreu em 64. O que o levou a sofrer o golpe, quais as acusações que recebeu e porque as recebeu. O que poderia ter sido feito para evitar e os motivos pelos quais Jango optou por não resistir.
 
Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle
Já esse documentário do Paulo Henrique Fontenelle casa perfeitamente com o anterior e serve quase como uma continuação. Esse filme passa rápido pelos principais acontecimentos na época do golpe e vai um pouco além, falando bastante sobre o exílio do Jango no Uruguai e sobre a operação Condor, que tinha como objetivo matar vários quadros políticos perseguidos pelas ditaduras latino americanas. Aqui, inclusive, há um vasto material que aponta que é bastante provável que Jango, Juscelino Kubitscheck e Carlos Lacerda foram assassinados, embora as investigações oficiais tenham ficado paradas e não tenham chegado a uma conclusão.
 
Em Busca da Verdade, de Deraldo Goulart e Lorena Maria
Esse filme fala bastante sobre a Comissão Nacional da Verdade, que foi a fundo em sua pesquisa para registrar todas as cagadas da ditadura militar. É aqui que a gente pode ver o Coronel Bilhante Ustra negando que pessoas foram torturadas e mortas no DOI-CODI que ele chefiava. Um canalha que, se houver um inferno, espero que esteja queimando nele por toda a eternidade.
 
Em Busca de Iara, de Flavio Frederico
Esse filme não é bom, já adianto. Mas acho que vale a pena pra gente saber um pouco mais sobre quem foi a Iara Iavelberg, guerrilheira que acabou se casando com o Carlos Lamarca e acabou assassinada. Tem uma entrevista nele que vale muito a pena, com um legista que, se eu não me engano, adulterou o certificado de óbito dela. (Ou algo parecido com isso. Faz tempo que vi, então minha memória pode estar me traindo).
 
Marighella, de Isa Grinspum Ferraz
Cinebiografia documental de Carlos Marighella, baseada (se eu não me engano) na biografia escrita pelo jornalista Mário Magalhães. O filme é excelente e vale muito a pena para a gente saber quem de fato foi o Marighella, ao invés de cair na ladainha dessa galera que o compara com os torturadores da ditadura. Não sejam ignorantes, muito menos calhordas. Marighella devia ser celebrado como herói nacional, como vários outros, e jamais comparado a essa escória de torturadores.
 
O Velho: A História de Luiz Carlos Prestes, de Toni Venturi
Outro cara que fez muito pelo país e que ganhou um filme decente, apesar de burocrático, sobre sua história. Não é um filme específico sobre a ditadura militar de 64, mas como o Prestes foi um cara que viveu bastante, sua história também passa pela ditadura que durou até 1985, já que ele também foi um exilado. De toda forma, vale conhecer a história de um cara que chegou a lutar contra a ditadura do Estado Novo. Muita gente talvez conheça mais o Prestes pela cinebiografia da Olga, sua esposa que acabou perseguida por Getúlio Vargas e mandada para morrer uma câmara de gás na Alemanha pelo próprio. Então vale saber um pouco mais sobre ele por esse documentário.
 
Brizola: Tempos de Luta, de Tabajara Ruas
E por falar em Getúlio Vargas, por que não nos lembrarmos de alguém que acabou se tornando próximo do Getúlio e também teve muita importância na história política dessa país, que foi Leonel Brizola? Talvez pouca gente saiba, mas Brizola, enquanto governador do Rio Grande do Sul, foi o responsável por garantir que o Brasil resistisse a um golpe militar em 1961, garantindo que o Jango conseguiria assumir a presidência após a renúncia de Jânio Quadros. Depois disso, Jango sofreu o golpe em 64 e ele se colocou de novo à disposição para resistir mais uma vez, mas Jango não quis. Dificilmente ele teria conseguido resistir por muito tempo, especialmente porque o golpe dessa vez contava com o total apoio e financiamento americano, mas estava disposto a lutar.
 
Brazil: A Report On Torture, de Saul Landau e Haskell Wexler
Esse é um documentário de 1971, feito por dois americanos, Saul Landau e Haskell Wexler (que foi diretor de fotografia de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? e Um Estranho no Ninho), e que mostra entrevistas com vários exilados brasileiros que contam e mostram como foram torturados no Brasil. Não é um grande filme, mas vale justamente porque foi realizado ainda durante o período da ditadura, então foi quase que uma reportagem denúncia sobre o que estava acontecendo no Brasil. E possui relatos importantes de gente que acabou sobrevivendo à tortura e partindo para o exílio. Alguns, como Frei Tido (que foi retratado em Batismo de Sangue) e a militante da VAR-Palmares (mesmo grupo a que pertenceu a presidenta Dilma Rousseff) Maria Auxiliadora Lara Barcelos, não suportaram a vida no exílio e destruição psicológica que a Ditadura Militar lhes causou e acabaram cometendo suicídio.
 
Enfim, como falei anteriormente, alguns desses filmes podem não ser cinematograficamente brilhantes, mas são importantes registros de um período que perseguiu, prendeu, torturou e assassinou brutalmente centenas (talvez milhares, porque muitas mortes acabaram não contabilizadas) de pessoas inocentes. A ditadura militar não poupou esforços para trucidar qualquer chance de oposição que tenha se ensaiado nesse país. Não poupou homens, mulheres, velhos ou crianças. Matou a tiros, a pauladas, com torturas das mais diversas, físicas e psicológicas. Usando de choques elétricos a baratas e ratos colocados em pênis e vaginas dos torturados.
 
É essa gente que Jair Bolsonaro enche o peito para defender e homenagear. Todos esses, os que são homenageados e os que homenageiam, mereciam a prisão. No mínimo. Como disse, a maior parte desses filmes são fáceis de se encontrar, muitos inclusive no YouTube. Assistam e divulguem. Todo mundo precisa conhecer nossa história. Para jamais nos esquecermos e pra que ela nunca mais se repita.
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Jornalista e crítico de cinema. Coautor do livrorreportagem Cine Belas Artes: Um Olhar Sobre os Cinemas de Rua de São Paulo. Acha O Poderoso Chefão o melhor filme do mundo, mas torce todos os dias para assistir a algum que o supere. Ainda não encontrou, mas continua buscando. E-mail: carlos@setimacena.com // Letterboxd: @CarlosCarvalho