Crítica: Era o Hotel Cambridge, de Eliane Caffé

Em um dos momentos de maior tensão em Era o Hotel Cambridge, dezenas de pessoas descem correndo de vários ônibus ao som de uma voz feminina que grita “corre, entra pra sua casa! Vai tomar conta do que é seu!”. Essa voz é de Carmen da Silva Ferreira, uma das líderes do FLM (Frente de Luta por Moradia), um dos inúmeros movimentos que batalham (muitas vezes literalmente) pelo direito de milhares de famílias de possuir uma residência, um teto pra chamar de seu. Direito esse, vale sempre lembrar, garantido pela Constituição Federal. Carmen é apenas um dos símbolos femininos de destaque nesse movimento. Ela assume a organização das assembleias, as discussões com a polícia e a Justiça, mas, principalmente, é a voz de comando quando acontece uma “festa”, nome dado ao ato de reunir dezenas de famílias (crianças e idosos inclusos) para ocupar um novo prédio abandonado a capital paulista.

Dirigido por Eliane Caffé, Era o Hotel Cambridge borra a linha que separa o documentário da ficção, tal qual uma ocupação borra a linha entre a moradia definitiva e a provisória em um antigo hotel. O prédio situado no centro de São Paulo é apenas um entre as dezenas de imóveis abandonados que não cumprem sua função social, muitas vezes com impostos atrasados que superam o valor do empreendimento. Com um elenco formado pelos próprios moradores da ocupação e com a colaboração dos atores José Dumont e Suely Franco, que também interpretam dois moradores, o filme retrata o cotidiano dessas famílias às vésperas de serem despejadas do hotel por conta de uma ordem judicial, que pede a reintegração de posse do prédio.

Ao longo de pouco mais de 90 minutos, Eliane desenvolve uma narrativa que aborda tanto a relação em comunidade dessas pessoas quanto temas mais individuais, como o contato dos refugiados de outros países como Congo, Palestina e Colômbia, com suas famílias em seus locais de origem. O próprio conceito de refúgio é bem abordado quando em uma das assembleias com os moradores do hotel, um refugiado palestino faz questão de ressaltar que os brasileiros da ocupação são tão refugiados quanto ele. “Sou um refugiado palestino no Brasil e vocês são refugiados brasileiros no Brasil”. Essa luta constante por um teto é mais do que apenas por um local para morar, é também uma luta por sobrevivência em um Estado que marginaliza e exclui grande parte da sua população, especialmente nas grandes capitais, onde o processo de gentrificação ocorre a pleno vapor, expulsando a população mais pobre para as periferias, onde há pouco ou nenhum acesso aos serviços públicos básicos, e aumentando a distância entre a casa e o trabalho dessas pessoas.

No filme, há um sentimento de urgência e um suspense crescente ressaltado pela contagem regressiva para a data marcada para a reintegração de posse. Ao mesmo tempo em que os moradores do Hotel Cambridge se organizam para produzir um vlog que mostra o bem que essas famílias proporcionam ao prédio, já que eles próprios se responsabilizam por revitalizar um local completamente abandonado há anos, Carmen, a líder do movimento, cuida da organização da próxima “festa”, que vai ocupar mais um prédio abandonado na cidade. Durante essa nova ocupação, ela faz questão de ressaltar que os moradores do Cambridge estão lá apenas para ajudar a fortalecer o movimento. A casa deles é no Cambridge, mas eles se unem para apoiar as dezenas de outras famílias que também lutam para conseguir seu teto.

Carmen é uma força da natureza, uma líder tão necessitada quanto seu “exército”, mas firme em sua batalha. Mesmo quando demonstra claros sinais de cansaço, não apenas pela responsabilidade de organizar algo tão grande, mas também por se ver como juíza em picuinhas menores de moradores, ela parece fazer de sua dor combustível para sua luta. E quando o fatídico dia da reintegração de posse chega, vemos mais uma vez Carmen assumir a liderança do grupo e orientar como os moradores devem resistir à truculenta ação da polícia. É nesse momento, aliás, que o filme fica com mais cara de documentário, já que as cenas da resistência contra a polícia são reais.

Quem se lembra desse evento, por ter acompanhado pelas notícias, talvez se recorde das imagens da PM recebendo côcos na cabeça. Muita gente, na época, fez questão de justificar a truculência da PM como se fosse apenas uma reação a esse “ataque” dos moradores do Hotel Cambridge. Em mais um acerto, o filme mostra que os côcos usados contra a PM eram a única maneira de resistir aos tiros e bombas jogados pela polícia em direção ao hotel. No filme, vemos o lado de dentro do prédio. O desespero das famílias, com crianças e idosos, tentando subir até o terraço para não serem sufocados pelo gás lançado pela polícia.

Sobreviver é o que eles fazem. Diariamente. É dessa luta por sobrevivência que eles tiram forças para seguir em frente. Não por eles, mas COM eles. A luta não é de apenas um indivíduo ou uma família. É uma luta coletiva, com todos. E por isso Carmen faz questão de ressaltar a importância da participação da comunidade, porque só assim serão capazes de conquistar algo que, na verdade, não deveriam sequer precisar lutar, já que é seu por direito. Mas o Estado não é justo e a Justiça parece estar sempre do lado “mais forte” (entre aspas mesmo, porque duvido que sejam mais fortes que os movimentos por moradia). Era o Hotel Cambridge é um documento histórico dessa luta. E quem não luta, como diz o grito dessas famílias, tá morto!

Enquanto morar for privilégio, ocupar é um direito

O longa de Eliane Caffé dialoga muito bem com outros dois filmes que também retratam a questão da luta por moradia e que podem ser vistos no YouTube: os documentários Leva (2011), dirigido por Juliana Vicente e Luiza Marques, e Dandara: Enquanto Morar For um Privilégio, Ocupar É um Direito (2013), de Carlos Pronzato. O primeiro retrata mais uma ocupação no centro de São Paulo, no edifício Mauá. Nele, vemos como foi importante a união de três movimentos distintos de moradia para consolidar uma ocupação com mais de duzentas famílias. Assim como em Hotel Cambridge, também é ressaltada a força das lideranças femininas nesse movimento e como elas são imprescindíveis na organização e motivação das demais famílias. O final é marcado por uma cena tão emocionante quanto a do filme de Eliane, quando eles quebram um muro que lacra um prédio abandonado, para ocupá-lo, revitalizá-lo e chamarem, um dia, quem sabe, de lar.

Dandara, aborda uma ocupação em Belo Horizonte, em Minas Gerais. Assim como nos dois outros filmes citados, mais uma vez as lideranças femininas são exaltadas, e aqui, o senso de coletividade ganha ainda mais destaque, já que a ocupação começou do zero, quando a área ainda era apenas um terreno abandonado por uma empresa, que não pagou a contrapartida que havia prometido para a prefeitura em troca da área. Centenas de famílias ocuparam o terreno por meses, morando apenas em barracas e vigiados e ameaçados diariamente pela presença constante da polícia. Mas eles não arrefeceram e foram, pouco a pouco, construindo suas casas e dando vida a um local abandonado. Hoje, o Dandara virou bairro em Belo Horizonte, mas ainda sofre com a falta de serviços públicos e com o preconceito (nem sempre) velado por ter nascido de uma ocupação.

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Jornalista e crítico de cinema. Coautor do livrorreportagem Cine Belas Artes: Um Olhar Sobre os Cinemas de Rua de São Paulo. Acha O Poderoso Chefão o melhor filme do mundo, mas torce todos os dias para assistir a algum que o supere. Ainda não encontrou, mas continua buscando. E-mail: carlos@setimacena.com // Letterboxd: @CarlosCarvalho