Crítica: Fragmentado, de M. Night Shyamalan

Depois de uma festa de aniversário, três adolescentes são sequestradas por um homem que ataca o pai de uma delas e rouba seu carro com as garotas dentro. Ao acordarem trancadas em um quarto num local desconhecido, elas logo percebem algo estranho com esse homem: ele possui várias personalidades. Este é Fragmentado, novo filme do cineasta e roteirista M. Night Shyamalan, dos aclamados Corpo Fechado e O Sexto Sentido, e dos que dividiram o público e a crítica Fim dos Tempos e Depois da Terra.

O longa começa bem ao construir uma atmosfera de suspense que coloca essas três meninas (e nós) em uma situação totalmente desconhecida. Elas estão trancadas e o tempo todo ameaçadas pela presença de um homem, Dennis, cuja postura fria e calculista de um psicopata é contrastada por algumas de suas 23 personalidades: Hedwig, um menino de 9 anos; Patricia, uma moça que parece dividir com Dennis a liderança do sequestro (e das outras facetas); Barry, um estilista que se mantém em contato com sua psiquiatra; e a Fera, que aparecerá no último ato do filme. Todas essas personas são vividas por James McAvoy, que demonstra habilidade em construir expressões e gestos distintos para cada uma delas, tornando-as bastante verossímeis, pelo menos para quem é leigo em TDI (Transtorno Dissociativo de Identidade).

Pouco a pouco, vamos sendo mergulhados nessa tensão do cativeiro em que as três moças se encontram, especialmente porque é difícil prever as características de cada uma dessas personalidades que o sequestrador assume e o real perigo que elas impõem. E essa sensação de impotência das vítimas só aumenta quando as três são separadas após tentarem fugir. Isso, além de diminuir a possibilidade de uma ação coletiva entre elas, aumenta a dúvida sobre o estado de cada uma, já que elas ficam sem contato entre si. Nesse ponto, vale destacar os vários enquadramentos superfechados que Shyamalan utiliza para ressaltar a sensação de claustrofobia naquele ambiente, assim como a opressão que elas sofrem desse sequestrador de múltiplas personalidades. Em vários momentos, a câmera fica colada no rosto das personagens e o uso das lentes grande angulares aumenta essa sensação de estranhamento, pois distorce os personagens e o ambiente enquadrado.

Entre as garotas, a que recebe o maior destaque é Casey Cook, vivida pela talentosa Anya Taylor-Joy, do ótimo terror A Bruxa. Ao longo do filme, vemos flashbacks de Casey ainda criança, quando era treinada pelo pai e pelo tio a caçar. Aos poucos, vamos percebendo que esses ensinamentos ajudaram-na a se tornar uma pessoa mais observadora, calma em situações de extrema pressão e com um bom senso de sobrevivência. Mas é justamente com essa história prévia dos flashbacks que começam os problemas de Fragmentado, já que além do treinamento de Casey, somos apresentados a um abuso sexual que ela sofreu do tio e que, posteriormente, terá grande influência no desfecho da história.

Além disso, as múltiplas personalidades do sequestrador começam a soar repetitivas, tanto na relação com as vítimas quanto nas sessões com a psiquiatra doutora Fletcher, que acompanha de perto o caso desse homem. E não dá para ignorar o fato de que, ao mostrar um personagem com várias personalidades, isso acaba servindo de muleta para que não se precise ir a fundo na história de qualquer uma delas, já que não há tempo para que isso seja melhor desenvolvido. Mas dá-se um desconto, afinal já é um ganho que essa personagem não tenha apenas duas personalidades, mas várias, como parece ser o mais comum em pessoas que sofrem com esse transtorno.

De toda forma, McAvoy dá conta das particularidades de cada uma dessas facetas (ainda que rasas como um pires), especialmente quando, em uma sessão com sua psiquiatra, ele sai de uma pessoa e entra em outra, com a câmera de Shyamalan mostrando de perto sua mudança de expressão facial. A mesma habilidade também é vista em cenas no cativeiro, quando em algumas situações ele precisa trocar rapidamente de personalidade e com o complemento de que, lá, ele ainda substitui o figurino de acordo com a pessoa que está em ação.

A questão é que, tão logo o fim se aproxima, ao sermos apresentados à 24ª personalidade, a Fera, professada como uma figura animalesca e messiânica, somos induzidos a esperar por um desfecho da história com um clímax altíssimo. De fato, a Fera é dotada de força e velocidade descomunais e sua ameaça tanto às três vítimas do sequestro quanto à doutora é real. Como uma verdadeira besta, ela parece não ter um controle racional de suas atitudes, agindo mais como um animal feroz incontrolável. E ao atacar a doutora e duas das moças, ela deixa claro o perigo que representa para Casey, que tenta a todo custo sobreviver a um inevitável ataque.

O problema é que, aparentemente, Shyamalan tem muito mais talento como criador de universos e diretor do que como roteirista. E chegam a ser vergonhosas algumas das decisões de roteiro tomadas por ele. Logo após ser atacada ainda por Dennis, antes do surgimento da Fera, a doutora opta por escrever em um papel uma maneira de controlar as múltiplas personalidades do sequestrador, citando seu nome real: Kevin Wendell Crumb. Ela poderia tentar fugir, tentar libertar as garotas que ela já sabia que estavam em cativeiro, poderia gritar por socorro (aliás, as vítimas parecem desconhecer essa possibilidade), mas ela opta por escrever em um papel seu “truque”, esperando que naquela situação desesperadora alguém parasse para ler um papel aleatório ao invés de correr pela própria vida. E pior: param e leem.

Depois de perceber que a Fera matou e literalmente se alimentou de suas duas colegas, além de também ter matado a doutora, Casey encontra o “Manual Prático para Controle de Múltiplas Personalidades”, também conhecido como papelzinho safado deixado pela psiquiatra e, a princípio, liberta Kevin (a pessoa original) de suas dezenas de personas, incluindo a Fera. Nesse momento, Shyamalan não cansa de se (e nos) envergonhar e faz com que Kevin conte para Casey onde guarda uma arma e munição e pede para que ela o mate, mas logo se arrepende. E não demora muito para que ele volte a ser invadido por seus outros “eus” e saia em perseguição à moça, dessa vez devidamente armada.

Nesse momento, a história toda ainda tinha salvação, já que ela poderia ter conseguido ferir gravemente a fera e fugir de alguma forma, ou matá-la (apesar de compreendermos o fato de que, sim, a fera é praticamente indestrutível, pelo menos para uma pessoa comum). Mas é aí que o diretor bota tudo a perder quando, ao colocar a Fera frente a frente com a garota, que será sua última vítima naquele ambiente, ela percebe as cicatrizes que Casey tem pelo corpo, possivelmente causadas pelo trauma de ter sido abusada, e faz uma conexão com a violência sofrida por Kevin durante a infância. O problema é que apenas nós temos alguma informação sobre as marcas de Casey, não a Fera nem qualquer outra personalidade de Kevin.

Teria sido verossímil se em algum momento ela tivesse ao menos contado desse abuso para alguma delas (ao menino Hedwick, por exemplo), mas ela não o faz. Assim como também não parece crível a instantânea reação da Fera ao ver as cicatrizes e a imediata compaixão que sente pela moça, justificada com uma linha vergonhosa de texto (“você é uma garota de coração puro”), já que há poucos minutos essa besta ultraviolenta acabou de assassinar três pessoas, tendo literalmente se alimentado de duas delas. Esse é um dos momentos mais constrangedores da carreira de Shyamalan, que parece não ter sabido como dar um desfecho à altura do suspense que vinha construindo e decidiu enfiar a história em um gigantesco tanque de anticlímax, já que a Fera simplesmente vira as costas e vai embora, deixando aberta a possibilidade de voltar em uma continuação, numa espécie de cliffhanger mal-ajambrado.

E se do ponto de vista psíquico essa explicação do gatilho para os traumas passados de Kevin faz sentido –e aí psicólogos e psiquiatras podem falar disso muito melhor do que eu–, do ponto de vista cinematográfico é apenas mal desenvolvido, já que esse gatilho não é bem introduzido no filme anteriormente. Se tivesse sido feito, ao menos teria deixado brechas para que pudesse ser utilizado posteriormente com uma base mais bem estabelecida. Mas Shayamalan e seu roteiro não o fazem.

Como se ainda não tivesse ficado satisfeito com o desastre do fim do filme, o cineasta ainda decide “jogar para a torcida” e inclui um epílogo que, certamente, vai fazer muita gente cair nesse engodo criado por ele. Em uma lanchonete, algumas pessoas acompanham pela TV o desfecho do sequestro das três garotas e a notícia de que o sequestrador está foragido. Com uma linha de diálogo assombrosa, uma figurante diz que esse caso lembra outro antigo, “daquele homem de cadeira de rodas, que não me lembro o nome”. E aí vemos a aparição de David Dunn, personagem vivido por Bruce Willis em Corpo Fechado, que surge apenas para dizer “Sr. Vidro”, lembrando o nome de seu rival na ocasião.

Esse, senhoras e senhores, é M. Night Shyamalan se entregando ao mais raso e desnecessário fan service, numa tentativa de resgatar seus fãs mais antigos, muitos que o abandonaram depois de uma sequência de filmes minimamente duvidosa, e pior, tentando surfar a onda dos resgates de filmes mais antigos e querendo transformar em franquia uma obra que parecia encerrada em si mesma. O que vem por aí, Corpo Fechado 2? Faça-me o favor, Shyamalan!

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Jornalista e crítico de cinema. Coautor do livrorreportagem Cine Belas Artes: Um Olhar Sobre os Cinemas de Rua de São Paulo. Acha O Poderoso Chefão o melhor filme do mundo, mas torce todos os dias para assistir a algum que o supere. Ainda não encontrou, mas continua buscando. E-mail: carlos@setimacena.com // Letterboxd: @CarlosCarvalho