No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
Carlos Drummond de Andrade
O carrinho de mão vermelho
tanta coisa depende
de um
carrinho de mão
vermelho
esmaltado de água de
chuva
ao lado das galinhas
brancas.
William Carlos Williams
Paterson (Adam Driver) é um motorista de ônibus e poeta que vive diariamente a mesma rotina. Acorda por volta das 6h, beija a esposa na cama, se levanta, toma café e ruma para a garagem da empresa de transporte para a qual trabalha. No caminho, observa os pássaros cantando, os esquilos se empoleirando pelas árvores, a luz do sol tomando conta da fachada dos prédios. No ônibus, esboça seus poemas em um caderno simples, apoiado ao volante, até que um colega de trabalho o avise que pode sair para suas viagens, nas quais ouve com certo interesse trechos de conversas dos passageiros. Volta para casa no fim da tarde, janta com a esposa e passeia com seu cachorro. Vai ao bar de um amigo, rabisca mais alguns versos e dorme, para recomeçar tudo de novo no dia seguinte.
Paterson é uma cidade pacata, quase interiorana, no estado de Nova Jersey, nos Estados Unidos. Os prédios não são altos, o trânsito flui sem engarrafamentos e quase todo mundo se conhece, ainda que apenas de vista. As pessoas conversam tranquilamente umas com as outras, sem julgamentos, sem enfiarem a cara em um smartphone e ignorarem o mundo ao seu redor. Ninguém parece ter pressa. O clima é ameno. Ensolarado, mas com um vento que chacoalha as árvores com calma e produz um som que não é superado por buzinas comuns a grandes cidades.
É nesse clima bucólico que Paterson, o poeta, e Paterson, a cidade, se fundem. E o produto dessa fusão é pura poesia. Poesia objetivista, palpável, diretamente ligada ao ambiente, ao objeto retratado nela. A poesia que não se descola do real. Tal como No meio do caminho, de Carlos Drummond de Andrade, ou como O carrinho de mão vermelho, de William Carlos Williams, ídolo de Paterson, o poeta, e poeta de Paterson, livro em cinco volumes lançado por ele entre 1946 e 1958, que nasceu inspirado pelas cataratas de uma pequena cidade, assim como aquelas que inspiram o poeta protagonista do novo filme de Jim Jarmusch.
O retrato quase documental que o cineasta faz de Paterson, o poeta, beira o tédio em que ele vive sua rotina incansável de repetimentos e mais repetimentos ao longo da semana. Mas tal como uma poesia sem rimas, Jarmusch insere um ou outro verso em meio ao tédio e dá alma a um personagem quase morto por dentro. Que só parece viver de verdade quando observa a realidade e a transforma em poema. Paterson não é bom em se expressar com a fala, ou com gestos. Mas é capaz de transformar uma simples caixa de fósforos em um objeto encantado, pronto para acender e aquecer um novo amor.
O roteiro, também assinado por Jarmusch, vez ou outra destaca a reação bem-humorada do protagonista aos pequenos acontecimentos que fogem à sua rotina, como a maneira como finge gostar da comida que sua esposa fez com tanto amor tentando agradá-lo, o riso que não consegue segurar ao ver o dono do bar dizer a um conhecido com coração partido que ele devia ser ator (e ele é) ou quando ouve de pessoas diferentes frases exatamente iguais, que demonstram como pensam da mesma maneira os habitantes daquela cidade, onde o inconsciente coletivo é predominante.
Adam Driver é muito bem-sucedido ao viver um personagem que raramente muda de tom. Vez ou outra entrega um sorriso, mas rapidamente volta à sua característica melancolia. A vida sem grandes aventuras desse motorista-poeta parece ter feito com que se acostumasse ao marasmo da cidade e o incorporasse à sua personalidade, que contrasta com o comportamento mais extrovertido da esposa, Laura (Golshifteh Farahani). Ela procura o tempo todo se expressar por meio de alguma atividade artística/criativa, como pintar, cozinhar, aprender a tocar um instrumento ou cantar, variando de acordo com o sonho que ela projeta para o futuro.
Enquanto Laura exterioriza tudo, ainda que de forma monocromática e pouco criativa. Paterson internaliza todos os seus sentimentos, que por vezes escorrem pela ponta da caneta, mas que ele faz questão de esconder do mundo. Com personalidades diametralmente opostas, como branco e preto, Paterson e Laura se completam e se fundem, como yin e yang, que se entrelaçam num movimento circular tal qual o dia a dia desse homem. Como Paterson e Paterson. E nessa vida de eternos recomeços, nada mais simbólico do que esse poeta buscar refúgio e inspiração naquilo que lhe pareça mais linear, como uma queda d’água constante que, embora pareça sempre igual, nunca é a mesma.